É tal como se encontra que eu gosto de Lisboa: nublada e melancólica, mas sem ser fria e negra. Prefiro-a assim aos mais comuns dias soalheiros, típicos do Verão, com uma luminosidade que até fere. Hoje, a capital está como deve estar. Porém, nem todos os habitantes da cidade a admiram nestas condições; quando Lisboa fica soturna nos seus dias, a população parece endoidecer.
Não me admirei, portanto, no meu trajecto matutino, e enquanto admirava a Lisboa obnubilada por simpáticas nuvens cinzentas, por encontrar gente absolutamente tresloucada cometendo actos irreais. Vi, por exemplo, um jovem universitário encostado a uma paragem de autocarro. A sua figura não se me aparentou desde logo saudável, visto que lia um exemplar do jornal do Benfica, e essa minha primeira impressão depressa se confirmou no momento em que o jovem resolveu espirrar. A convulsão foi de tal ordem forte que metade da cara soltou-se-lhe e foi depositar-se no meio da estrada. Um carro, ao vislumbrar tão inaudito objecto, travou a fundo. Outro, que se lhe seguia na traseira, não teve a mesma sorte e bateu, com estrondo, no primeiro. Uma terceira viatura ainda esboçou uma travagem mas debalde: pespegou-se contra o segundo automóvel, que embateu de novo no primeiro, levando este, pela posição em que se encontrava, a capotar.
Eu, vendo tudo isto confortavelmente do lado do passeio, só me lembrei de lançar "Netherlands, twelve points. Le Pays-Bas, douze points. Holanda, 12 pontos", no melhor estilo Eládio Clímaco. Nenhum dos outros transeuntes percebeu a minha ironia, e muito menos o jovem universitário lampião, que lançava incompreensíveis mas nada impolutos impropérios (que linda aliteração, pá!) na minha direcção enquanto tentava recuperar, do meio do asfalto, a metade do seu rosto.
Reconhecendo que a minha presença naquele local não estava a ser propriamente desejada, continuei a caminhar pela linda Lisboa livre (oh, mais uma aliteraçãozinha tão gira...). Perto de um dos muitos hotéis da capital, estava um funcionário da Câmara a proceder à poda de uma árvore. Executava o seu ofício calma e delicadamente, quando, à entrada do hotel, pára um autocarro com matrícula espanhola. Janelas são abertas e surgem cabeçorras espanholas. Não demora nem meio segundo para que todas aquelas cabeças desatem a cantar, em uníssono, "Y Viva España, La La La La La La La La", com certeza ainda deslumbrados que estão por aquela treta de Mundial. Aproximo-me do autocarro, grito "Hey, cabrones" repetidas vezes, até assegurar que todas aquelas cabeças estão voltadas para mim, levanto a mão esquerda, lentamente, viro as costas da mão, lentamente, para os espanhóis, baixo, lentamente, o polegar, baixo, lentamente, o indicador, baixo, lentamente, o anelar, e por fim baixo, lentamente, o mindinho, revelando aos espanhóis um majestoso manguito. Eles não gostam e, à semelhança do jovem universitário lampião sem meia-tromba, lançam-me, nada lentamente, ofensas verbais. Mas nisto ouve-se um zunido grave, seguido de um TRÁS ensurdecedor: a árvore que estava a ser podada acabara de cair... mesmo em cima do autocarro dos espanhóis. Alguém lá em cima deve gostar muito de mim... e muito pouco de peropomperos!
Abandono o cenário e persigo o meu caminho, nesta Lisboa enevoada. À direita, vislumbro anciãs a debicar pedaços de papo-seco junto dos pombos. À esquerda, observo dois casais homossexuais a dançar O Lago dos Cisnes. Adiante, um lisboeta vestido de Batman passeia o seu cão que enverga a fatiota do Robin. Atrás, um grupo de toxicodependentes diverte-se a tentar enfiar seringas usadas num caixote do lixo, como se fossem jogadores de basquete.
Não há dúvida: Lisboa está completamente ensandecida. A humanidade não se habituará jamais à visão de uma Lisboa coberta de nuvens no Verão. Suspiro fundo, lanço um último olhar a estas ruas inquietas e vou mas é trabalhar.
Bom fim-de-semana
sexta-feira, julho 16, 2010
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6 comentários:
Já percebi o porquê da tua sugestão...
Ainda bem que não trabalho em lisboa! Mas eu ao contrário de ti, para variar, prefiro os dias solarengos, não com muito calor mas com "muita luz"!!
Quanto aos espirros, só me lembro de um maior do que aquele que deu o muito saudável benfiquista (e o Homem deve ter espirrado por alergia a Lagartos).
Foi tal o espirro do Bettencourt, que fez com que o vosso (ex) capitão espirrasse lá para cima, para aquele clubezito ainda pior que o seu.
Provocação clubistica à parte, partilho da aversão aos nuestros (bastarditos) hermanos e gostei dos seus textos.
@Rafa: olha que não fumei nada! Eu sou mesmo assim...
@Gaja: eu sei que gostas de luz. Por isso é que te calhou um "iluminado" como eu! :)
@Salvador: não sei se ficámos a perder. O capitão foi-se, vieram 11 milhões de euros.
"Eu, vendo tudo isto confortavelmente do lado do passeio, só me lembrei de lançar "Netherlands, twelve points. Le Pays-Bas, douze points. Holanda, 12 pontos", no melhor estilo Eládio Clímaco. " ahahahahhaah, excelente Peter.
Sou um filho dos Festivais da Canção, pá! Aliás, não somos todos?!?
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