terça-feira, setembro 17, 2013

Juízos sintéticos a priori há muitos, seu palerma!

Parece uma notícia típica de silly season, mas é tudo menos silly (e, já agora, também não é nada season): na Rússia, andaram aos tiros por causa do filósofo Immanuel Kant. Pronto, está bem, dito assim, até que é um bocadinho silly.

Não que a História da Filosofia esteja isenta de episódios de violência. Não está. Ficou célebre a quase agressão de Wittgenstein a Karl Popper com um atiçador numa ocasião em que discutiam questões filosóficas. Há um romance qualquer a narrar este episódio, leiam-no e não me chateiem. Mais célebres ainda, embora mais distantes no tempo, ficaram as contendas entre os filósofos medievais a propósito da chamada Querela dos Universais. Essas contendas, que começavam sempre por ser disputas intelectuais, resvalavam não poucas vezes para o confronto físico, o que dá ares de paradoxo quando se sabe que tais filósofos eram frades, monges, enfim, homens de grande devoção cristã. Se por um lado andavam a pregar a castidade e o amor ao próximo, quando o assunto era saber se as propriedades (os tais "Universais") tinham uma existência concreta (assim defendiam os realistas) ou não passavam de meros nomes (posição dos nominalistas), a moralidade cristã ia para o caraças e passava a valer tudo, até atirar Bíblias às cabeças adversários. E esta merda devia aleijar à séria, pois as Bíblias de antanho eram bem mais pesadas do que aquelas comercializadas hoje em dia. Coisa para abrir um buraco maior do que esta lesão do futebolista Wayne Rooney.

Seja como for, andar aos tiros por causa de uma discussão filosófica é algo inaudito. E mais inaudito é todo este caso quando se vê que o causador involuntário foi Kant, o filósofo que defendia não devermos olhar os outros simplesmente como meios para outras coisas, e estou a simplificar. E ainda mais inaudito é saber que a disputa decorreu quando os dois indivíduos intérpretes do kantianismo estavam a tentar comprar cerveja.

Espantadas, as autoridades procuram agora saber qual das formulações filosóficas kantianas levou ao extremar de posições entre os dois russos. Oposição quanto ao significado do imperativo categórico? Ou terá sido a dedução transcendental das categorias? Ou mesmo os juízos sintéticos a priori? Ou o apelo ao Reino dos Fins, de resto, se é permitida a minha opinião, um dos aspectos da filosofia kantiana que dá mais vontade de bater em alguém, a começar pelo próprio Kant?! Enfim, aguarda-se ansiosamente a resposta, e eu só espero que a polícia russa tenha pelo menos um especialista em Filosofia, uma espécie de Horatio Caine com uma pós-graduação (mestrado, no mínimo!) em Idealismo Alemão.

Só mais uma nota: segundo refere a notícia do Sol, "as discussões sobre filosofia são muito comuns na Rússia". Se isto for verdade, não sei o que ando a fazer aqui. Por bem menos, o Depardieu pediu cidadania russa. Ter uma menor carga fiscal é giro, sim, mas estar num país onde se discute filosofia na fila para a mercearia é mais giro ainda. Quer-me parecer que ainda vou ter de descobrir o e-mail do Putin e solicitar-lhe, também eu, a cidadania russa...

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