segunda-feira, novembro 22, 2010

Os meus amigos malucos

Quando era mais novo, dava-me com gente muito maluca. Enfim, a infância presta-se aos mais bizarros desvarios, bem sabemos, só que os meus amigos eram uns radicais do disparate, uma espécie de Black Bloc da maluqueira.

Por exemplo, o Ruço. O Ruço era um ganda maluco. Enquanto o resto da pandilha ficava na rua a jogar à bola, ou ia para os caniços encher-se de pulgas e de piolhos, o Ruço andava por ribeiras e charcos em busca de sapos. Quando apanhava um, lambia-o de cima a baixo, de um lado e do outro, e depois ia a correr dar linguados nas raparigas. Elas, como se poderia esperar, odiavam: já o Ruço, bom, o Ruço desatava às gargalhadas. Hoje em dia, não sei se ainda se ri - da última vez que tive notícias dele, parece que lhe descobriram girinos nos intestinos. É provável que agora ande por aí a cagar rãs. É isso e o ter mau hálito...

Havia também o Bicas. O Bicas era assim chamado porque o pai tinha como trabalho tirar cafés numa pastelaria do bairro. O Bicas também era um ganda maluco. Jogava à bola connosco, mas às vezes, a meio de um desafio, dava-lhe na cabeça, sentava-se no chão a cantar o Chico Fininho do Rui Veloso, tirava os ténis ou as meias que trazia (a maior parte das vezes, era mesmo só meias. Ténis, naquela altura, eram um luxo...) e punha-se a esfregar os pés no chão. Era indiferente o jogo desenrolar-se na relva, na terra ou mesmo no alcatrão de uma estrada: o Bicas esfregava os pés fosse onde fosse. Não raras vezes, ficava com as solas em carne viva. Mas ele parecia não sentir dor e lá continuava a cantar o Chico Fininho. Depois cansava-se, punha as meias ou os ténis e voltava a jogar como se nada houvesse passado. O Bicas só parou com esta mania lá pelos seus 13, 14 anos, altura em que arranjou a primeira namorada. Ironicamente, passados poucos meses a tipa dava-lhe com os pés... Pobre Bicas!

E o Nando?! Pá, o Nando era pouco maluco, era... O gajo tinha a pancada por velhas! Sim, aquilo a que agora, mais finamente, se chama gerontofilia. Nós não o chamávamos gerontófilo, até porque a) não sabíamos que essa palavra esquisita existia, b) mesmo que soubéssemos da sua existência, duvido que a conseguíssemos proferir. Dizíamos simplesmente, entre nós, que o Nando era um tarado. E parvo, porque ao invés de responder aos apelos da Sandrinha, a rapariga mais gira do bairro, e que gostava dele, o Nando jurava a pés juntos que haveria um dia de casar com a dona Antonieta, uma viúva de 87 anos que era tia-avó do Ruço e que, curiosamente, tinha cara de sapo... Mas isto se calhar era só eu a achar, pois para a minha mente infantil, todas as velhas pareciam ter cara de sapo. O Nando não via isso. Não, ele via uma coisa completamente diferente. Enquanto nós, por exemplo, no nosso grupinho de amigos, falávamos das experiências por que havíamos passado depois de termos visto o Nove Semanas e Meia pela primeira vez e gabávamos o cu da Kim Basinger, o Nando suspirava pelas rugas da dona Antonieta. Ele via beleza onde nós só víamos verrugas, dentes podres e pêlos no queixo. Quando ela passava diante de nós, onde cheirávamos vinho e queijo rançoso, o Nando cheirava vales floridos. Quando a dona Antonieta faleceu, o Nando chorou por dias a fio. Só recuperou quando viu, no funeral, uma prima afastada da dona Antonieta que contava 92 anos. Era mesmo assim, o Nando!... Há coisa de um par de anos, estive em casa dele. Está solteiro, sem filhos, mas pareceu-me bem, tirando os posters da Amélia Rey Colaço espalhados pela sala de estar... Pode ser que um dia encontre a sua cara metade, coitado.

Tive muitos amigos muito malucos, não tive?!? Chega a ser surpreendente ver como nada disto me afectou e como consegui chegar a adulto revelando um grau de normalidade e lucidez invejável....

2 comentários:

Ilda disse...

Grau de lucidez, normalidade... dizes tu!

Anónimo disse...

Um doentio grau de lucidez meu caro...