quinta-feira, fevereiro 21, 2013

Direito de contraditório: o Piolho

Refastelado estava eu a tomar o pequeno-almoço quando aparece num canal qualquer de notícias um senhor muito indignado com os piolhos, porque eram uma praga, porque davam cabo do couro cabeludo, porque eram pouco higiénicos, porque destruíam as cabeças das nossas crianças, porque isto, porque aquilo. Por mim, tudo bem, mas achei de muito má fé ninguém do canal se ter dignado a falar com um piolho, no sentido de auscultar a sua opinião. Gostam todos muito de falar em direito de resposta, em contraditório, em debate saudável e tudo isso, mas na prática é o que se vê.

Pois eu, que sou muito democrático e gosto de saber as diferentes perspectivas, além de ter uma inclinação para me colocar do lado daqueles que são visceralmente atacados, desde que os atacados não sejam americanos, portistas, benfiquistas e votantes do PSD e do CDS, tudo grupos que merecem ser massacrados de todas as maneiras e feitios, ora, dizia eu que gosto de confrontar os vários pontos de vista, pus-me a caminho e fui entrevistar um piolho. Cá fica a reprodução da conversa altamente produtiva que tivemos.

- Senhor Piolho, bom dia. Penso poder tratá-lo por senhor Piolho, certo?
- Olhe, se quer ser mais exacto, terá de tratar-me por doutor Piolho, pois eu tenho um doutoramento em Antropologia Piolhística pela Universidade Técnica da Seborreia.
- Está bem, doutor Piolho. Já agora, para os que desconhecem, onde fica essa universidade?
- Lá está, é típico de vocês humanos o quase total desconhecimento da vida dos piolhos. A Universidade Técnica da Seborreia é das universidades piolhosas mais conceituadas, estando no 2º lugar do ranking feito recentemente pela consultora LENDEA. Localiza-se no couro cabeludo de um jovem mineiro africano do Serenguéti, Jonah Appiah. Isto o campus, pois o edifício da reitoria teve recentemente de ser mudado para a Nova Zelândia, numa política de expansão da universidade, e ocupa agora a cabeça de uma menina de 5 anos, cujo nome não recordo de momento. Está a apostar-se no futuro, é o que é, e espera-se que toda a universidade seja deslocalizada para a Oceania num prazo não superior a 3 anos.
- Bom, agradeço a sua explicação tão rigorosa. Mas vamos a questões mais prementes.
- Vamos!
- O que lhe pareceu o bloco noticioso hoje relatado na RTP1, em que os piolhos foram claramente atacados?
- Olhe, este é um problema que se repete há já muito tempo. Há uma clara discriminação dos seres humanos face a nós, piolhos. Somos malquistos há séculos, para não dizer milénios. É uma perseguição, uma afronta... olhe, é uma merda!
- Mas diga-me, doutor Piolho, como reage às acusações de parasitismo e destruição do couro cabeludo dos humanos?
- Calúnias. Tudo calúnias! Os piolhos não pretendem o fim da massa capilar. E se sugam o sangue de humanos, é porque não é fácil encontrar alimento num ambiente tão pouco próspero. Tudo o que os piolhos querem, tudo o que os piolhos desejam, é tranquilidade e levar as suas vidas calmamente, cuidar das suas lêndeas, enfim, tudo propósitos pacíficos. Mas como respondem os humanos? Com champôs, com pentes finos, com produtos químicos que arrasam colónias inteiras. Ainda se fôssemos nocivos como a caspa, essa sim, uma espécie horrível e que merecia o extermínio, agora nós?! Não há direito.
- Porém, doutor Piolho, tem de reconhecer que a vossa presença causa algum desconforto nos indivíduos hospedeiros...
- Isso são inverdades, falsidades e mentiras!
- Como assim? Nega a comichão? O mau aspecto que causam aos cabelos? A transmissão de doenças, em casos extremos?!
- Falso, falso e falso! O piolho não faz mal a ninguém. O piolho é um bom piolho. O piolho é um ser pacífico e ordeiro. O piolho não merece a má fama que tem.
- Pronto, e ficamos por aqui hoje. Muito obrigado, doutor Piolho, por ajudar a esclarecer algumas questões que rodeiam a piolheira.
- De nada. Já agora, não conhece ninguém com o cabelo para alugar? É que eu e a minha família já estamos fartos da cabeça do Miguel Relvas...

Foi isto. Um dia, ainda entrevisto um tal de treponema pálido.

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