quinta-feira, maio 05, 2011

A arte de ser português (e o Pascoaes que se f...)

Nas últimas 2-3 semanas, fui mordido por um bicho estranho qualquer que me levou a ler de empreitada só obras de ficção de autores portugueses. Comecei pelo Requiem para D. Quixote, do Dinis Machado na sua encarnação Dennis McShade, continuei com O Delfim do José Cardoso Pires, na sua encarnação José Cardoso Pires, e acabei com A Jangada de Pedra, do José Saramago, na sua encarnação de escritor pré-nobelizado. Foram todas óptimas leituras, exceptuando a última... que foi excelente! Na verdade, espanta como um país tão limitado no campo técnico-táctico, ou, dizendo por outras palavras, com tão claras lacunas intelectuais, consegue produzir escritores de enorme requinte, tão diferentes entre si e com estilos narrativos tão originais.

Não obstante as diferenças, há algo comum a estas três obras e, se me é permitido ir mais longe, há algo comum a toda a literatura portuguesa de categoria, seja ela da lavra dos supracitados, de um Eça de Queirós, de um Vergílio Ferreira, de um Jorge de Sena, enfim, não faltam casos particulares. E esse algo comum, na minha óptica, é um assumir de um certo desencanto, um descontentamento para com o estado de coisas e para com as pessoas. No Requiem para D. Quixote, por exemplo, o qual constitui o 2º volume das desventuras do detective e assassino a soldo Peter Maynard, o protagonista é cínico o suficiente para estar fora da lei e ao mesmo tempo evitar a corrupção do sindicato do crime organizado (Maynard só mata quem merece estar morto), ao mesmo tempo que se debate com uma úlcera que o corrói por dentro. Embora o enredo se passe maioritariamente em Nova Iorque, o substrato é do mais português. N'O Delfim, que à sua maneira é também uma espécie de romance policial, mas anti-policial, o que parece uma contradição mas não é, o desencanto é geral, indo das instituições às classes sociais, quer sejam abastadas ou não. Mais: o desencanto é tão, mas tão grande que as personagens, o narrador e, por arrastamento, o leitor, não sabem o que de facto aconteceu na propriedade dos fidalgos Palma Bravo. O criado morreu ou foi morto? Maria das Mercês suicidou-se, morreu às mãos do esposo ou tudo não passou de um acidente? E Tomás Palma Bravo, por onde pára? Tudo é inconclusivo e, ao sê-lo, desarma-nos. Já n'A Jangada de Pedra, o mundo sai - literalmente - dos seus eixos, ao ver-se a Península Ibérica arrancada da sua ligação à França e navegar, aparentemente livre, por aqueles mares já dantes, por portugueses, navegados. A partir deste ponto, o que fazer? Como se vive a vida quando a realidade é virada às avessas?! No fundo, o que este acontecimento da ordem do incrível e do bizarro ilustra é que, por vezes, e no caso dos portugueses o "por vezes" deve ser lido como um "quase sempre", é preciso dar-se uma catástrofe para que as pessoas acordem da sua letargia. Qualquer comparação com a realidade actual do país NÃO É uma mera coincidência...

Este desencanto que perpassa por grande parte das obras literárias da nossa língua não é senão um espelho daquilo que somos. Há muitos idiotas por aí a afirmar que aquilo que falta a Portugal é uma boa dose de pessimismo. Desculpem lá, não sei como hei-de dizer isto, mas... esses idiotas não passam de uns idiotas! Os portugueses são pessimistas, só que são pessimistas do pior tipo, isto é, são pessimistas de sorriso de orelha a orelha. No fundo, os portugueses são uma espécie de Demócrito: por fora, riem, por dentro, choram. Esta atitude, aliás, acaba por ser uma demonstração mais profunda de pessimismo do que a de Heraclito, o filósofo que chorava por fora para demonstrar como chorava por dentro. Se querem mais detalhes sobre esta oposição, leiam um sermão, belíssimo aliás, do padre António Vieira sobre o assunto.

Portanto, somos pessimistas sim. Somos eternos descontentes. Nunca estamos satisfeitos com nada. Se votamos ("votamos" aqui é para ser entendido apenas estilisticamente. Eu não votei!) no Sócrates, não é porque achemos que ele seja bom, é sim porque julgamos que os outros são pelo menos tão maus quanto ele. Isto é pessimismo! Se compramos ("compramos" aqui é para ser entendido apenas estilisticamente. Eu não compro) o último modelo de telemóvel XPTO, ou o último gadget, é porque não estamos satisfeitos com a catrefada de modelos de telemóvel ou de gadgets que comprámos anteriormente e agora andam lá por casa a criar bicho na arrecadação ou, à falta de espaço, dentro do autoclismo. Isto é pessimismo! Se andamos ("andamos" aqui... ah, vocês já sabem) à porrada nas estradas e nos parques de estacionamento, se discutimos nas filas de supermercado ou nos hospitais, se gastamos dinheiro em bolas de golfe para atirar aos adversários em vez de gastarmos em comida, isto é estúpido. Mas também é pessimismo! Ou vocês acham que um optimista, uma pessoa bem consigo mesma e esperançosa no futuro faz estas merdas?!? Claro que não, pá!

Ser português, então, é ser pessimista, mas um pessimista especial de corrida que esconde o seu pessimismo debaixo de uma capa de optimismo. Eu também sou assim: ficarei muito contente se o Braga hoje bater o Benfica, mas isso não esconde, mesmo que dê muitos pulos de alegria, a abissal tristeza que sinto por não ser o Sporting a disputar a conquista da Liga Europa... e do Campeonato... e da Taça de Portugal... Também fico contente por passar muito futebol na televisão, mas isso não tapa a minha frustração, o meu quase desespero, por não ver mamas de todo o mundo em horário nobre. E se, por acaso, passassem mamas de todo o mundo em horário nobre, eu ficaria triste por não passarem mamas de todo o universo a toda a hora. E se, também por mero acaso, o Sporting conquistasse a Taça de Portugal, o Campeonato, a Liga Europa, a Liga dos Campeões, a Supertaça Europeia e a Liga Mundial de Clubes, eu ficaria enfezado por não sermos campeões ingleses ou não podermos conquistar a Taça da Liga da Papuásia Nova Guiné. Enfim, eu sou assim, um constante instatisfeito, e vocês também são. É esta a arte de ser português.

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