segunda-feira, maio 09, 2011

O Peter of Pan vai ver um espectáculo de dança: crónica de uma tarde de sofrimento extremo


Chamem-me insensível, chamem-me bruto, chamem-me filisteu, até podem chamar-me Maria Cristina, mas sempre detestei dança. Sempre! Trata-se de uma manifestação artística à qual jamais serei capaz de dar crédito, e é irrelevante se se trata de ballet clássico ou de dança contemporânea. Um ou outra são, para mim, a mesma porcaria. E até hoje, embora tenham tentado desviar-me por várias vezes, consegui sempre escapar-me a assistir a um desses tristes espectáculos.

Até que chegou a tarde de ontem. A tarde de ontem foi, servindo-me de uma analogia, o momento em que eu saí do jardim do Éden para cair no seio do pecado e da mancha. É que ontem fui arrastado para um espectáculo de dança contemporânea, a saber, Uma Coisa em Forma de Assim, que está em cena no Teatro Camões. Coitado do Luiz Vaz, deve estar a dar voltas na tumba. Coitado do Alexandre O'Neill, que também deve andar de um lado para o outro, pois não há direito de utilizarem um título dele para o aplicarem numa performance de dança.

Em minha defesa, tenho a dizer que fui enganado. O plano cultural para a tarde não era, à partida, exactamente aquele. O que me foi dito, e que aqui reproduzo, para melhor compreenderem o meu estado de espírito, foi isto:

Gaja: Meu macho sexy e viril, temos convites para ir ver uma peça de teatro.
Eu: Boa. Onde?
Gaja: No teatro Camões. Ah, e antes ainda passamos pelo Museu da Electricidade e vamos ver o World Press Photo.
Eu: Fixe, parece-me um bom plano. 'Bora lá.

Fomos ter com o casal amigo (a partir de ontem, ex-amigo) que detinha os convites e dirigimo-nos ao World Press Photo. Todavia, e aqui é que os acontecimentos começam a ficar aterrorizadores, durante a deslocação o casal amigo (correcção, outra vez: ex-amigo) armou-se em José Sócrates e desinformou-me. Sim, tal como o primeiro-ministro diz agora que não é preciso ajuda externa, e daqui a pouco diz que é, também a mim deram o dito por não dito, e vice-versa:

Gaja do casal ex-amigo: Ah, afinal os quatro convites que temos não são para o teatro.
Gaja: Então são para o quê?
Gajo do casal ex-amigo: Nem calculam...
Gaja do casal ex-amigo: São para um espectáculo de dança!
Eu: Ah! Ah! Ah! Boa piada. Não, a sério, qual é a peça que vamos ver?!
Gaja do casal ex-amigo: Não estou a brincar. É dança.
Gajo do casal ex-amigo: Contemporânea. Portuguesa.
Eu [já com suor a escorrer-me pelo rosto]: Vocês não estão a brincar?
Gaja do casal ex-amigo: Não!
Gajo do casal ex-amigo: Não!
Eu: AAAAAAAH!!! Parem o carro! Deixem-me sair! SOCORRO!!! AHHHHHH! Sou demasiado novo para morrer!!! Larguem-me! Larguem-me!
Gaja: Ai, tão dramático. Mas que estás para aí a fazer?! É só um espectáculo de dança, não é o fim do mundo.

Este argumento, tão ingénuo e ao mesmo tempo tão cruel, fez-me sair do meu estado maníaco e entrei no meu estado depressivo. "Tu não compreendes, pois não?", disse à minha gaja. "Tu não fazes ideia do que é dança contemporânea, pois não?", insisti. "Tu achas normal, e artístico, e belo, ver gente a ter ataques epilépticos no meio de um palco. Tu achas normal gajos arrastarem gajas pelo chão, gajos e gajas a rebolar, aos encontrões, a desmontar os braços e as pernas, e ainda haver quem pague e aplauda para ver isso. Mas eu não. Eu não aguento!"

A gaja limitou-se a responder-me com um olhar de desdém, ignorante de que, à semelhança da privação do sono e da simulação de afogamento, os espectáculos de dança contemporânea são um meio de tortura proibido pela Convenção de Genebra. Nesta altura, eu já parecia o Churchill a chamar a atenção para o perigo nazi antes do início da segunda guerra mundial: tal como ele apelava aos cuidados com o Hitler, limitando-se os seus conterrâneos a uns "Ó Churcill, o Adolfo?!? O Adolfo não faz mal a ninguém, pá. Ele é um amor de pessoa, basta olhares para aquele bigodinho. Era só o que faltava, entrar em guerra com alguém que parece o Charlot! O que vai ele fazer, anexar a Áustria e invadir a Polónia ah ah ah ah?!?! Ó Churchill, larga o úisque e toma juízo", dizia eu, tal como o Churchill era desprezado, só eu sabia o terror em que nos estávamos a meter, mas ninguém me deu ouvidos. Ninguém, oh, pobre de mim. A minha caminhada para o Gólgota continuou:

Gaja: Ah, vá lá, não sejas chato, eu nunca vi um espectáculo de dança.
Eu: Tu não queres ver, a sério.
Gaja do casal ex-amigo: Eu também nunca vi.
Gaja: Ainda por cima, é de graça.
Eu [a ver aqui um fundinho de esperança]: Pá, mas se o problema é esse, eu pago para irmos ver outra coisa!
Gajo do casal ex-amigo: Olha, boa. Podemos ir ver o Battle of Los Angeles. Ou o Velocidade Furiosa 5.
Gaja: Não, o meu gajo não gosta desses filmes.
Eu: Quem, eu?! Nãão... Eu adoro películas estúpidas de acção com actores nada convincentes e argumentos com tanta imaginação que parecem ter sido escritos por uma lesma em estado de coma. EU PAGO PARA IRMOS AO CINEMA! Vamos ver o Vin Diesel. Duas vezes seguidas. Eu pago o lanche. O jantar! No Gambrinus! Tudo em vez de não irmos à dança.
Gaja: Não! Eu quero ver o espectáculo. É a minha primeira vez.
Gaja do casal ex-amigo: Concordo.
Gajo do casal ex-amigo [armado em cobardolas]: Pronto, está bem, se vocês estão assim com tanta vontade...
Eu [de volta ao meu estado maníaco]: AAAAAAAH!!! Parem o carro! Deixem-me sair! SOCORRO!!! AHHHHHH! Sou demasiado novo para morrer!!! Larguem-me! Larguem-me!

Estive nisto uns 10 minutos, até voltar a cair no meu estado depressivo. Andei apático durante todo o percurso na exposição da World Press Photo, não tendo nem sequer disposição para gozar sadicamente com aquelas fotografias mais tristes. Quando olhava para aqueles somalis sem roupa, comida e tecto, ou para os haitianos subjugados pelo terremoto, em suma, quando via aqueles retratos de acções de violência cometidos ao homem pela natureza e pelos outros homens, eu só pensava para comigo: "Ah, meus semelhantes, meus irmãos, a partir de hoje também vou saber o que é o sofrimento. Como te compreendo, mexicano enterrado e só com a cabeça de fora. Como te percebo, toureiro com um corno espetado no maxilar. Eu tenho a certeza que se soubessem que estou prestes a assistir a um espectáculo de dança, todos vós estariam compadecidos".

Já cá fora, a gaja ainda tentou uma aproximação ao oferecer-me um gelado, mas o meu espírito já não ligava enquanto eu sorvia aquele magnum delicioso. O meu fim estava próximo. Ainda voltei a tentar: "Vá lá, está um dia tão bonito e vocês querem encerrar-se numa sala? Vamos à praia, vamos a um jardim, sei lá, essas coisas." Debalde, debalde, era tudo infrutífero. Chegámos então à porta do teatro Camões, e o Tejo, ali tão perto, era um abismo que me atraía. Sim, pensei no suicídio, confesso. E só não o consumei porque os meus cds precisam de mim. Qual condenado, lá entrei no teatro. Ainda tive forças, enquanto o casal ex-amigo entregava os convites ao rapaz da recepção, para gritar um SALVE-ME. SALVE-ME, POR FAVOR, mas o gajo ficou a olhar para mim como se eu fosse um alucinado e lá fui arrastado para dentro da sala. Se ao menos me tivesse julgado maluco e chamasse a ambulância, a coisa ainda teria acabado bem, mas não, achou-me maluco e não fez nada. É triste quando a humanidade se reduz assim, à indiferença...

Já lá dentro, apercebi-me de como a crueldade de facto não tem limite. As saídas de emergência encontravam-se lacradas! Vários seguranças ladeavam as coxias. E pior que tudo: o número enorme de criancinhas que foram levadas a ver este espectáculo. É isto, mais do que outra coisa, que traduz o triste estado da nossa sociedade: como é possível não nos revoltarmos quanto jovens e inocentes crianças são arrancadas às suas playstations e obrigadas a assistir a eventos de dança?! Como é isto possível?! E ninguém faz nada?! Quer dizer, do Bibi toda a gente diz mal e o caraças, mas e o que é que mereciam estas pessoas que levam os seus filhos para estes locais? Era retirar-lhes logo a custódia das crianças e proibi-los de procriar!

Ao meu lado, a gaja estava ausente de tais considerações. Só esperava, ansiosa, pelo início do flagelo espectáculo. Novamente, tentei falar com ela com a voz da razão: "Olha que tu não sabes no que te vieste meter! Tu não fazes ideia do terror que ajudaste a libertar!", só que ela virou-se com um "Shhht", e pronto, estava mais do que visto que a minha inocência, a minha vida feliz e livre de performances de dança chegara mesmo ao fim.

Foi então que a tortura principiou. Tudo o que eu esperava acontecer, aconteceu. Ataques epilépticos. Corpos rebolando pelo chão. Gente a arrastar-se. Gajos roçando-se em gajos. Gajas a fazer o pino, a abrir as pernas, mas sem despertar um mínimo de sensualidade que fosse, enfim, tudo tudo tudo o que de mau poderia aparecer. A dada altura, fiz algo que nunca fiz na minha vida: apelei a uma força superior. Pela primeira vez, rezei. Disse: "Meu palhaço..., desculpa, isto é uma falta de respeito, vou começar de novo, Meu Palhaço, assim, como P grande, eu sei que durante estes anos todos não acreditei em Ti, mas agora está aí a Tua oportunidade para mostrares como eu estava enganado. Prometo, se provocares já aqui um ataque de paralisia aguda e total a estes dançarinos, que a partir de hoje serei o mais pio e o mais crente, seguirei todos os Teus ensinamentos, perseguirei homossexuais, queimarei infiéis, baterei em mulheres, essas merdas, enfim, farei tudo aquilo que se pede a um bom cristão. E, já agora, se é mesmo verdade que És o Amor e o Bem, faz lá uma forcinha para o Messi vir para o Sporting. Mas só se Te apetecer, é claro. O que eu gostava mesmo era que terminasses com o meu sofrimento nesta sala, ok? Obrigado e Glória a Ti nas Alturas."

Não é preciso ser o professor Bambo para adivinhar o que se deu, pois não?! A existência de um ser sobrenatural, omnipotente, omnisciente e sumamente bom não passa mesmo de uma quimera. Se existisse, nunca seriam permitidos espectáculos de dança. Se existisse, nunca os inocentes seriam sujeitos a este grau de dor e sofrimento. Venha lá agora o cardeal Ratzinger desmontar esta minha ideia, a ver se é capaz...

Foi duro, sem qualquer intervenção, fosse ela divina ou humana, aturar aquilo até ao fim, mas finalmente após uma hora e vinte minutos, que para mim mais pareceram 6 anos sob o governo de José Sócrates, a dança acabou. Fraco de corpo e de espírito, debilidade essa agravada pela percepção de que as outras pessoas, gaja e casal ex-amigo incluídos, aplaudiam veementemente a prestação dos "artistas", saí do recinto, certo e seguro de já não ser o mesmo homem que era antigamente. A gaja ainda me perguntou se eu tinha gostado, ao que respondi "Não fales comigo!" Sou bem capaz precisar de ajuda especializada, não para esquecer, porque os horrores que ali vi jamais abandonarão a minha memória, mas ao menos para ultrapassar, para conseguir viver com isto.

Até amanhã.

2 comentários:

Ilda disse...

Eu gostei e prontos!És um insensivel!!! Fingir que se está ter uma ataque de epilepsia e ser-se arrastado pelo chão bem como andar aos encontrões tb é arte ou melhor é dança contemporanea!!!

)0( disse...

Espero que já tenhas recuperado. :)