sexta-feira, julho 29, 2011

Pedalar até cair (6)

O esperto aqui hoje trouxe a bicicleta no comboio. Pensei: "ah, é sexta-feira e o caraças, há menos gente, e o dia acordou meio chocho, dá para levar a bina sem ficar a pingar suor". Adicione-se que os comboios da Fertagus têm espaços feitos de propósito para deixar as bicicletas. Assim sendo, transportar a minha coisa fofa* de duas rodas parecia-me uma escolha acertada. Deixei-a no sítio designado para o efeito, apertei-a com a correia e fui-me sentar, acompanhado do meu leitor de mp3 e do meu livrito de momento.

Aparentava estar tudo muito bem quando, ali no início da ponte 25 de Abril, sentido Pragal-Lisboa, ouço - apesar dos decibéis do meu mp3 - um estrondoso PAM! Suspeitando do que poderia estar na origem daquele PAM, levantei-me esbaforido e olhei para o sítio onde tinha deixado a bina. Tal como eu prevera, ali estava ela, caída no chão, deitada sobre o seu lado direito, com o seu peso em cima do pedal e da corrente. Temi pela sua saúde e, espetando um encontrão numa velha e um calduço num neo-nazi, irrompi pela carruagem até me debruçar junto da minha coisa boa** de duas rodas. Aí, fiz o que qualquer ser imbuído de uma enorme sensibilidade moral teria feito: pousei as minhas mãos no guiador da bina e procurei avaliar o estado daquele corpo metalizado que ora jazia no solo indiferente do comboio. Ela não dava sinais, o que me assustou, levando-me a perguntar às pessoas que se encontravam ali perto se alguém sabia primeiros socorros. Todos disseram que não, à excepção do neo-nazi, que disse "Não, Heil Hitler! Até conheço um tipo negro, judeu e gay que tirou o curso disso, mas neste momento não te pode ajudar porque está a viver na minha cave, e por viver quero dizer ser torturado, e por cave quero dizer masmorra, e por tipo negro, judeu e gay quero dizer cabrão negro, judeu e gay". A eloquência deste filantropo quase me distraiu do essencial, porém assim que acabou o seu discurso voltei-me para o que realmente importava, a coisa maravilhosa*** de duas rodas imóvel aos meus pés.

Devagar, e com uma calma que na verdade escondia o meu nervosismo interior, levantei a bina. Ao fazê-lo, notei nas causas daquele PAM que desencadeou toda a situação: a correia que deveria servir para acondicionar a bicicleta no local destinado para o efeito estava mal apertada; um solavanco mais intenso bastou para soltá-la e, deste modo, impelir o meu meio de transporte predilecto de encontro ao chão. Compreendi, também, que a culpa fora minha; pois tinha sido eu que apertara mal a correia. Suave e docilmente, voltei a colocar a bicicleta no seu lugar, apertei-a desta vez com vigor, pedindo-lhe de antemão desculpas por tudo o que acontecera, facto que levou uma senhora grávida sentada no banco das grávidas a exclamar "É louco!", mas eu não liguei, essas atitudes de incompreensão só revelam que as pessoas não sabem o que dizem, essa senhora grávida pode estar a marinar um filho no seu ventre, contudo aposto que não sabe o que é ter uma bicicleta, cuidar dela todos os dias, sacrificar a sua vida por ela, dar-lhe tempo, comprar-lhe produtos bons, enfim, tratá-la como merece. Inconscientes, é o que eu digo!

A bicicleta, com esta minha segunda tentativa, lá estabilizou e pude então reparar que nada grave lhe tinha sucedido. Aparentemente, fora só o susto e agora já estava em óptimas condições. Quando, no final da viagem, saí da estação e tomei o meu posto em cima daquele selim, percebi que era como se nada tivesse ocorrido. Pedalei-a como sempre havia pedalado, fiz rasantes aos automóveis como sempre havia feito, estava tudo normal, ela não sofreu com o choque e eu também não, a vida é bela, o Sporting é o clube mais lindo do mundo, a crise económico-financeira não me assusta e a partir daqui vou ter mais cuidado e amarrar-lhe a correia nos comboios da Fertagus como se de uma sessão sado-maso se tratasse. Está tudo bem...

Aproveito para desejar a todos, em particular a mim próprio, umas excelentes férias.









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*"Coisa fofa" é como quem diz. Aquele selim continua a seviciar-me o traseiro... que cabra!
**"Coisa boa" é como quem diz. Aquele selim con... ah, ok, já disse isto antes. Peço desculpa.
***"Coisa maravilhosa" é como quem diz. Aquele... iá, acho que já perceberam a ideia!

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